terça-feira, 17 de março de 2015

"A PAUSA DO ARTISTA" DO POETA ESCRITOR CLAUDER ARCANJO

A pausa do artista

Clauder Arcanjo

Para Anchella Monte

Não estou bem certo acerca do horário. Oito, nove, dez...? Sinceramente, não me lembro da hora exata.
Lembro muito bem, no entanto, que era uma manhã de março. Uma manhã trigueira, coberta por fiapos de nuvens esparsas, com um sol cativo a reinar quase no cocuruto do dia.
Ia ao Centro. Disperso, eu ouvia uma música romântica no som do carro. De repente, o sinal fechado. O olhar perdido no longe, à espera do verde que iria autorizar-me a seguir caminho.
Não sei por qual motivo os meus olhos foram chamados para a esquina seguinte. Nela, um homem, quase agachado, a chupar o caroço de uma manga.
Chupava-a com a sofreguidão de um faminto exilado, com a volúpia de um completo apaixonado e com o encantamento de um poeta frente à sua fatal musa inspiradora.
Dois detalhes, contudo, tomaram, por completo, a minha atenção. Primeiro: entre os joelhos dele, três malabares. Segundo: no rosto, a maquilagem típica de um palhaço de circo. A pausa do artista; pensei.
Com certeza, já dera por ele naquele ponto. Sempre passo por ali, quando sigo para o comércio. Porém, somente nessa ocasião, atentei para o detalhe da sua luta. Sim, não deve ser fácil a labuta diária de um palhaço de rua. Perdera seu circo? Fora demitido?...
De supetão, uma nuvem de inquietação assomou à minha mente. Existiria circo nos arredores das nossas cidades? Por onde andariam os palhaços da minha infância?
Não me refiro, caro leitor, aos hodiernos espetáculos circenses, não. Estes nunca me encantaram. Sempre preferi, e prefiro, a lona pequena, com o contato, quase ao rés do chão e do riso, entre a trupe e a plateia alumbrada e contente.

***

Um sorriso franco assomou aos meus lábios. A imagem viva do Circo Brasil, com seu picadeiro mambembe, fez-se presente na tela da minha memória.
— Hoje tem espetáculo?
— Tem sim, senhor!
A amplificadora, improvisada na carroceria de uma velha fubica, a correr becos e esquinas de Licânia; e a garotada, em festa, a seguir e saudar a boa-nova.
Quando, à noite, juntando os parcos cobres, eu passava pela portaria do maravilhoso mundo circense... o mundo se cobria de alegria e completo contentamento.

***

Voltemos à esquina.
Cronista curioso, corri, depressa, a vista no derredor do artista de rua. Sua mala, pequena e aberta, à sombra de uma pequena árvore. Dentro dela, dois lenços de seda, um chapéu coco e outros três malabares coloridos. Ao lado da maleta, uma garrafa plástica com água. Junto aos pés do artista, uma pequena latinha. Na certa, recolhedora dos níqueis dos transeuntes e motoristas.
Buzinei para chamar-lhe a atenção. Ao tempo em que metia a mão no bolso à procura de algum dinheiro. Neste exato momento, ele me dirige o olhar; sem deixar de chupar o caroço da manga. Um olhar tristonho, cansado e desiludido.
Veio em minha direção, sempre com a fruta na boca. Não trocaria o prazer do certo pela esmola do duvidoso.
Ao chegar junto ao meu veículo, percebi-lhe uma lágrima na máscara de palhaço. Uma lágrima escura, quase a tomar a metade da sua face esquerda. Passei a cédula às mãos calosas. Incontinenti, ele fez uma pausa no seu lanche e... sorriu-me.
O sinal abriu, e eu tive que seguir.
Não sem, antes, ouvir, embevecido, a máxima-pergunta das minhas reminiscências:
— Hoje tem espetáculo?!...

Clauder Arcanjo

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