sábado, 28 de fevereiro de 2015

CAMBONO (PARTE XXVII) POR CLAUDER ARCANJO

Mário Gerson (Gazeta do Oeste):
 
Segue, ver no corpo da nota e no anexo, a minha contribuição para o espaço Questão de Prosa, caderno Expressão, jornal Gazeta do Oeste (Mossoró-RN), edição do próximo domingo (15 de fevereiro de 2015).
Desta feita, a vigésima sétima parte da novela-folhetim Cambono. Folhetim este que está sendo publicado, capítulo a capítulo, domingo a domingo, nas páginas desta Gazeta do Oeste.
Favor acusar recebimento.
Saudações literárias de
Clauder Arcanjo.

+++

Cambono
(Parte XXVII)

Clauder Arcanjo

De volta ao que não foi

Para José Maria Alves Arcanjo

Apesar de todo o trauma, vivido por mim no capítulo anterior (motivado pela invasão em tropel de fúria de várias personagens desta novela-folhetim) e por Zé Aguiar e toda a sua família (com a inesperada e dolorosa passagem de Maguinho), a vida tem que voltar ao normal nestas paragens fictícias.
Então, estou aqui, caro leitor, de volta para onde nunca deveria ter saído.
Confesso que um pouco ressabiado com a pequena, discretíssima, repercussão a este meu provinciano romance de escol.
Como?! Não me está entendendo!?
Grande novidade, meu caro! Grande novidade! Há exatos vinte e seis capítulos, você tem me dado reiteradas provas de desleal entendimento. Melhor, de leal desentendimento.
Como?! Não quer conversa comigo!?
Nem eu com você, ora bolas! Onde já se viu tamanha e tão ranheta presunção! Nunca me deparara com um leitor tão cruel com um aplicado escriba!
Bom, enquanto os leitores se esgoelam, a caravana ficcional passa. Não tão rápido, que eu não sou repórter, mas, sim, escritor. Escritor cata as palavras, escolhe o verbo, doira a frase; sugere, ao tempo em que, elipticamente, capciosamente, açula e instiga a mente de quem o lê. No caso do mister de repórter, há pouco compromisso com a arte e com o engenho, apenas a pressa de transcrever, de nominar, de enumerar, de relatar; seco e cru, ao calor e na velocidade (no mais das vezes, de forma veloz e desconcertante) da pena. Em tempos de informática e de rede mundial de computadores, e do abusivo copiar-colar, a coisa tomou foros de lesa-aceleração.
Pois bem, pois bem!... Onde eu me encontrava mesmo?
Não sabe!?... Estamos, pelo menos uma vez na vida, em comum acordo: nem eu, muito menos eu.
Ó Deus dos escritores desgraçados, onde estás que não respondes? Em que planeta, em que página, em que livro, Tu escondeste a minha prosa?
Calma, Clauder Arcanjo! Assim a coisa toma ares-açoites de Navio Negreiro: “Fatalidade atroz que a mente esmaga!/ (...)/ Como um íris no pélago profundo!...”

***

Recomposto e diante de uma fidalga lua que assoma e reina no céu estrelado deste meu querido chão, um silêncio que antecede à criação. De repente, não mais do que de repente e imediatamente...
— Como?!... Ele foi visto saindo de um terreiro de macumba!? Bem que eu desconfiei daquela sua nova amizade! O tal do visitante, o Senhor Formigão Gallo dos Anjos, é natural de Salvador, da Bahia, muito afeito aos ritos e danças d’além-mar. Para mim, um macumbeiro! — era a avó Parmênides, zelosa e rubicunda, preocupada com os novos boatos que varriam as ruas e becos de Licânia.
— Não criei um neto para ser cambono de ninguém. De ninguém! — arrematou a Senhora Parmênides, com o dedo na cara do vento.
Como ninguém não sabia o que significava “cambono”, todos foram dormir com a coceira e a sarna da dúvida.
No outro dia, logo bem cedo, vários licanienses amanheceram a bater na porta da farmácia do Professor Galvino. “O que é um cambono, professor?”
Ele pediu um tempo, fingiu compromisso com o banheiro, e entrou para o depósito dos fundos.
Ao retornar, Galvino pigarreou e despachou, com a sua voz de barítono da ribeira do Acaraú:
— Simples, minhas senhoras e meus senhores, muito simples. Se fossem um pouco mais ligados ao mundo dos livros e menos à esbórnia e à cachaça, saberiam...
— Professor, por favor!, homem de Deus, deixe o sermão para o domingo, vá! Nós estamos nos roendo, nos consumindo de tanta dúvida. A situação já é motivo de grossa aposta na bodega do Paulo Amaro. Para mim, na base do três por um, de que isso é palavrão dos grandes; daqueles da moléstia da bexiga, de corar o pestilento e o boca suja do Gazumba — era o Paulino Marlley, sempre presente nos acontecidos da cidade.
Ao seu lado, Zé Aguiar coçava o saco, esticando o fundo puído das calças de brim surrado quase até o chão.
— Ô negócio complicado, mais difícil do que botar no tempo o motor do fusquinha do Sebastião da De Lourdes! — aflito, Zé Aguiar puxava ainda mais o coitado dos seus pertences.
— Parece de borracha! Será que é grande? Ui!... — os olhos do Raimundo Mulher, único baitola oficial da comunidade, não saía da mira do avantajado saco escrotal do Aguiar.
— Afasta pra lá! Afastem todos pra longe, cambada de desocupados! O meu cacete de juá está escutando a conversa e doido, doidinho, para amaciar o lombo de gente! — era o cabo Jacinto Gamão, a trazer a paz armada para o Mercado Público.
— Muito bem, restabelecida a ordem pública, devo continuar — era a voz do mestre Galvino, reinando, soberana, sobre a algaravia do populacho. — Como eu ia dizendo, se estudassem um pouco mais saberiam que “cambono”, segundo o dicionário Houaiss, é um substantivo masculino. Na umbanda, na cabula e em outros cultos de influência banta, ajudante do pai ou mãe de santo, ou assistente dos médiuns incorporados ou, ainda, auxiliar para várias finalidades rituais no terreiro ou centro. Grafa-se, também, em outras duas formas; vejamos: “cambona” ou “cambone”. Provavelmente, segundo Cacciatore, uma alteração, etimologicamente falando, da forma “cambondo”.
Quase foi aplaudido de pé pela plebe rude. Sim, a multidão já contava mais de uma centena. Curiosos e desocupados sempre foi moeda de fácil troca naqueles fervilhantes e fuxiqueiros sertões cearenses.
Com a explicação professoral, a velha Parmênides tomou cor de cabra frouxo, daquele tipo que acabara de visualizar uma visagem das mais cabeludas.
Sim, ela ficou meio amarelada no rosto e meio arroxeada nos braços e nas pernas. Com pouco, a cara inchou, os beiços esticaram e, mais do que imediatamente, todos que estavam junto a ela, abriram-lhe caminho.
A velha correu, desembestada, no rumo da casa do visitante baiano.
Lá chegando, meteu o pé na porta. Foi banda de lata e pedaço de madeira para mais de quilômetro de distância.
— Ô cabra mentiroso da bexiga!
Calma, seu leitor, isso se chama recurso pleonástico de notória expressão, com o fito de necessário e fundamental reforço estilístico. Os mestres do romance, de quando em vez, e com leal parcimônia, fazem uso desse aperitivo. Não é coisa para beber e se lambuzar; não, tão só para molhar os lábios finos da prosa. Entendeu?
Continuemos. Pois bem. Onde eu me encontrava mesmo?
— Não sei.
Pois eu sei, seu leitor disperso, filho de uma quenga frouxa!
Estou ligado, muito ligado. A memória está viva, e a prosa, bem... nem se fala.
É hora de pegar o atalho e me levar de volta.
Com a porta ao chão, e já dentro do ambiente, Dona Parmênides deparou-se com a penumbra da paz. Ao fundo, duas velas acesas e uma discreta e bruxuleante lamparina. “Vixe! Valei-me, minha Nossa Senhora dos Aflitos!” Ao canto esquerdo, duas redes grandes armadas. Dentro de cada uma delas, o ronco mavioso de dois inocentes.
— Não sabia que o diacho e o seu secretário roncavam! — assacou, viperina, a velha dama.
Parmênides aproximou-se dos punhos. Na maior, branquinha como algodão, o Senhor Formigão Gallo dos Anjos, mulato alto, filho de São Salvador da Bahia, “muito afeito aos ritos e danças d’além-mar”. Na outra, uma rede encarnada como o sangue vivo, o nosso herói.
Sim, toda novela-folhetim necessita e deve ter o seu herói. E o nosso, de agora em diante, levará, nas costas e pelas costas, a alcunha de Cambono.
Contudo, não esqueçamos o seu nome de batismo: Adamastor Serbiatus Calvino.
Depois, prometo-lhe, darei fim a este desfecho.
— Como é que é, seu escritorzinho de uma figa?! “Dar fim a um desfecho”! Por esta, sinceramente, eu não esperava.
— Vá à merda, seu leitorzinho de província!
Melhor eu me acalmar. Não devo entrar em baixas provocações.
Por hora, chega!; estou cansado, e o editor já me conclama.
— Cadê o novo capítulo, Clauder Arcanjo?
Ei-lo. A sorte de Cambono está lançada.
Bom domingo.

Clauder Arcanjo

Nenhum comentário: