sexta-feira, 20 de junho de 2008

ESCRITOR E POETA LÍVIO OLIVEIRA ENTREVISTA RONALDO CORREIA DE BRITO

Entrevista de Ronaldo Correia de Brito a Lívio Oliveira (19/06/2008):

1. De que ponto se parte no regional para se atingir os elementos da universalidade, do cosmopolitismo?

R – Eu inventei um modo de chamar o teatro popular nordestino: grande teatro universal de tradição popular. Descobri, sem muito esforço de investigação, que os nossos reisados, bois, cavalos marinhos e outros brinquedos se filiam à mesma tradição do Nô, do Kabuki, do katakali e do teatro de Bali. O tempo consagrou essas expressões do teatro e da dança, que influenciaram artistas do mundo inteiro, e foram a base dos cânones da dança moderna. São exemplos de expressões coletivas e regionais que o tempo universalizou. O mesmo acontece com a criação de um único artista. Ele possui um saber localizado, base de sua criação, e a partir dele pode se abrir para outras influências, criando uma obra mais universal e menos regional.

2. O sertão ainda inspira a literatura?

R – O sertão tanto pode significar um espaço mítico como um acidente geográfico. Santo Agostinho perguntava sobre o tempo: o que é o tempo? Se não me perguntam eu sei, se me perguntam, desconheço. O que é o sertão? Se não me perguntam eu sei, se me perguntam desconheço. O sertão é abstrato ou real como o tempo. E continuará sendo assunto para muita literatura, sempre.

3. Que perigos existem na travessia do sertão à cidade grande, à metrópole? Como não se perder nesse caminho? Como não se perder no retorno?

R – O sertão é um espaço da memória, inteiramente confundido com o urbano. É o melhor lugar do mundo para acessar a Internet, porque as lan house cobram apenas cinqüenta centavos por hora. Meu novo livro trata apenas disso, de idas e vindas, mergulhos e retornos nesse mundo suburbano chamado sertão.

4. Que influências você associa a sua escrita? Você beberia numa fonte única ou "exclusivista" como se faz no movimento armorial de Suassuna?

R – Eu sou um cara inteiramente aberto a qualquer influência. Não estou nem aí para qualquer tipo de fidelidade. Sou marcado pela escrita de Rulfo, Borges e de vários russos. O livro que marcou mais profundamente minha escrita foi a História Sagrada, que sempre li como um livro de narrativas e nunca como um escrito religioso. Concordo com o ponto de vista de Robert Alter de que a Bíblia é uma prosa de ficção.

5. Que espaço a medicina, sua profissão originária, tem na sua literatura? Você ainda atua como médico ou privilegiou o fazer literário?

R – Continuo trabalhando como médico e não pretendo me afastar da medicina, nunca. Escrever e atuar como médico são atividades sem conflito. Acho que não seria escritor sem o longo e exaustivo exercício da medicina. Todos os dias eu convivo com o sofrimento, com a doença, com a alegria da cura e com a morte. Ouço histórias que anoto e que podem aparecer em algum conto ou novela. Em “Livro dos Homens” existem dois contos desenvolvidos a partir de minha vivência como médico.

6. E a psicanálise? Sei que você se dedicou profundamente ao tema.

R – Sou um escritor psicanalisado e minha escrita reflete isso. Nunca quis exercer o papel de psicanalista, embora tivesse me preparado para isso. Não conheço boa literatura escrita por psicanalistas. O hábito profissional da escuta e da escrita psicanalítica contamina a criação literária e o resultado é sempre muito ruim. Só Freud escreveu boa literatura. O lacanês é uma desgraça.

7. Do conto ao romance...quais são os passos dados?

R – Eu precisava escrever um romance para ter mais espaço para discussões que não cabem no conto. Mas, sou um romancista conciso. Nunca conseguiria escrever centenas de páginas como os russos e os escritores de língua inglesa. Levei a mesma tensão que trabalho nos contos para o romance. E isso se alcança em poucas páginas.

8. Como caracterizar a "consistência" na escrita? Num exercício de especulação, o que Calvino poderia ter falado a respeito?

R – Trabalho dois propósitos na minha literatura: a exatidão e a rapidez. Sou obsessivo em tentar dizer o essencial com poucas palavras. Cada dia, me preocupo menos com o efeito das frases. Já não tento alcançar a beleza; prefiro alcançar a verdade. Quase não crio metáforas e censuro os adjetivos. Acho que sou esquemático, o que não deixa de ser um perigo para a literatura. Mas não suporto gorduras, sempre busco chegar ao osso.
9. Como funciona uma mente múltipla que se dedica ao teatro, ao conto, à medicina...?

R – Só consigo viver fazendo muitas coisas. Mas todas estão bem harmonizadas e é como se eu me movimentasse dentro de um mesmo universo.

10. O amor ainda é matéria para a literatura? Que tipo de amor?

R – Tudo é matéria para a literatura, até mesmo o amor.

11. A sua experiência com o cinema e o teatro tende a continuar? O que lhe interessa nesse âmbito?

R – Quando terminei de escrever meu novo livro, um romance chamado Galiléia, tive a impressão de que havia escrito o roteiro de um filme. Eu espero que ele seja filmado, logo. Escrevo sempre a partir de impressões visuais, arranjos de cena. Nunca escrevi por sugestão deste ou daquele texto literário. As imagens do cinema me sugerem muito mais profundamente do que um conto ou novela. Escrevo teatro com facilidade. Sou um homem de teatro, conheço a carpintaria teatral. Escrever para cinema e teatro é bom porque podemos acompanhar a encenação ou a filmagem, vemos a transformação do texto numa outra linguagem. Adoro isso.

12. Que espaço a música e outras formas de arte possuem na sua alma e na sua produção literária?

R – Tudo o que escrevo tem uma música. Nessa segunda-feira, dia 16 de junho, viajei ao Rio para a leitura dramática de quatro monólogos meus. As pessoas ficaram surpresas com a força e a presença da música dentro do texto. Mesmo quando não está referida, há sempre uma música por trás do que estou escrevendo.

13. Como um escritor do Nordeste pode transpor a linha restritiva imposta pelas regiões mais desenvolvidas economicamente do país? Que esfinge é essa, a do mercado editorial?

R – Nesta semana o meu amigo Gilvan Samico completou 80 anos. Eu fui curador das duas maiores exposições da carreira dele: na Pinacoteca do Estado de São Paulo e no Museu Oscar Niemeyer, de Curitiba. Samico quase não saiu de Olinda e nunca fez concessão ao “mercado”. Mas, sempre vendeu bem e todos afirmam que ele é o mais importante gravador brasileiro vivo. Ele nunca se preocupou em fazer um nome e fez. Ele ocupou-se em criar e gravar. Acho que o escritor deve se preocupar em escrever bem. Se ele ficar muito ligado nessa história de mercado e editoras, ele pira. Falo por experiência própria.

14. Que opções, na vida e na formação intelectual, são essenciais ao escritor?

R – Ler muito, agüentar o tranco da solidão, ser capaz de uma viagem interior. E é preciso estar sempre muito aberto à experiência da escrita. É um ofício amargo, duro, uma quase ascese. Não vejo nenhum glamour em ser escritor. Só conheço muito trabalho, uma busca permanente da literatura e horas de estudo.

15. É imprescindível a sedução do leitor? Merece ele alguma concessão?

R – O leitor é de fundamental importância para o escritor. O retorno de leitura, não apenas da crítica, sobretudo do leitor comum, funciona muito para a nossa escrita.

16. Que desejos (propósitos) e planos tem nutrido o homem e o escritor Ronaldo Correia de Brito?

R – Eu gostaria de escrever um livro que me deixasse satisfeito. Mas isso nunca acontecerá. Estou sempre esperando por esse livro. Ah, se fosse Galiléia! Mas como tenho certeza que não é ele, já estou trabalhando em novos livros. Também desejo viver mais serenamente, sem a angústia da espera. Não desejar e não esperar. Isso é quase a santidade
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